Botswana, Foto T.Abritta, 2008

sábado, 15 de janeiro de 2011

Canta, Corumbau. Canto

Corumbau – longe de tudo. Vento soprando, mato rangendo, mar estrondando. Num som sumido, afastado, cachorro latindo. Perto, apenas pássaros piando. O fogo-apagou (1) apregoando. Daqui sai nossa história. Do passado distante vinte e cinco anos, entrando pelo hoje.
O pequeno grupo caminhava de Porto Seguro a Prado no sul da Bahia. Foram quase duas semanas, uns cento e muitos quilômetros: areias, falésias, rios, lugarejos. Naquela noite – atrevidos – a travessia do Rio Corumbau. Havia chovido muito nas cabeceiras, a maré alta represando as águas: Lua cheia. Quase afogados, acabamos salvos pela canoa do Pataxó. O caiambá do pagamento foi em Cruzado ou uma daquelas moedas da época.
Acampamos na Vila de Corumbau. Verdadeira festa pra criançada maravilhada com as barracas coloridas entre choças e ranchos cobertos com palha de marimbu; paredes de xandó (2). Abandonavam o conforto das redes, dos trançados de tucum e embira (3). Tal pirilampos, rodeavam os fogões atraídos pela chama nos bicos de gás vindo dos botijões. Rostos sonolentos, formavam longa fila para sentarem nos dois banquinhos de lona e pés de alumínio. Alguns traziam cocos como presentes. Todos protegidos da tosse comprida (4) e outros males com colares de sementes coloridas.
Banheiros? Muito mato à disposição. Água? A cacimba do povoado era mais perto. Ali, lavava-se roupa, tomava-se banho; cachorros, porcos e galinhas bebiam água. Meia hora a pé, o poço da Fazenda São Francisco. Aqui não tinha criação chafurdando. Tudo cercado. Somente pra gente.
Pela manhã, o trabalho. Canoas escavadas em troncos, remavam, abrindo velas mar adentro. Mulheres benzendo, crianças acenando. Ao entardecer, uma festa quando as primeiras velas pontilhavam o horizonte. Todos agradeciam a São Francisco pela pescaria. A praia tomada, parecia formigueiro humano: uns puxando rede, outros carregando balaios, canoas arrastadas, crianças correndo, algumas brincando com arraias. Mulheres limpavam peixes que eram salgados, e logo dependurados em varas para secar ao sol.
Com o cair da tarde a vila ia se aquietando. Poucos ainda proseavam na venda, que tinha chão cimentado – símbolo de riqueza neste lugar. A maioria preferia pisar na areia, onde nasciam, estudavam, dormiam; trabalhavam e morriam.
No silêncio, iluminada pelo luar, a Ponta de Corumbau mostrava-se mais impressionante. Com a maré baixa caminhava-se um quilômetro mar adentro no banco de areia depositado pelo rio. A grandiosidade da natureza fazendo-nos pensar.

Nas minhas andanças pelo Brasil, conheci Uostons, Uilians, Uelintons. Nomes com que a sabedoria popular enriquecia o vernáculo, deixando a letra W no estrangeiro.
Mas aqui conheci um Ulisses. Não era um qualquer. Este Ulisses era diferente. Antigo faroleiro, passara anos acendendo o farol de Corumbau, livrando embarcações dos areais e águas pedregosas.
Na sua vendinha, Nego Ulisses, como era conhecido, tinha artigos essenciais: fósforos, velas, barras de sabão, farinha, rapadura, creolina para bicho-de-pé e cachaça. No canto, o candeeiro projetava sombras e desafios na mesa de sinuca.
Foi um jogo memorável. João-sem-braço, pescador lá das bandas de Porto Seguro, venceu a competição. Cachaça queimando gargantas, estalos nas bocas, vivas ao campeão, vivas a Nego Ulisses, querido por todos.
Aqui cabem explicações: João-sem-braço era o mestre da traineira que transportava nossas barracas e tralhas. O braço perdido, não lembro se esquerdo ou direito, foi arrancado durante o parto. História triste. Sussurrada ao pé do ouvido.

Hoje, Corumbau continua um canto longe de tudo, como diz a tradução de seu nome. Poucas mudanças. Na vila as casas são de madeira ou alvenaria coloridas. A vegetação de restinga continua preservada. O Parque Nacional do Descobrimento foi criado e acabou unindo-se a diversas fazendas que viraram Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN). O farol acendendo e apagando todas as noites, brilhando agora com baterias solares. Paisagens infinitas, as águas subindo e descendo nas areias brancas. Apenas os olhos saltados dos siris, saindo das tocas para espiar.

Na praia deserta, o gosto adocicado das ostras da barra do Rio Corumbau. Noite escura, sem Lua, céu estrelado. Vozes infantis brincavam ao longe. Como coro de um teatro imaginário, chamavam todos com quem falei, escutei ou ouvi falar, para uma prosa.
O poeta-pescador Honorato, mal chegou, já foi falando: o melhor da vida é inventar poesia.
E a turma se anima e vai conversando:
As canoas eram feitas escavando o tronco de pequi (5) com enxó (6). Hoje o povo prefere barco a motor. No fundo é bom. Dava dó derrubar um pau de três braças. Inda sobraram algumas. Se o sinhô for ao final da tarde, lá pros lados da Carroula, tem sempre uma jogando rede (ver Foto 1).
Nós aqui somos devotos de São Francisco. Lá na Carroula, a devoção é pra São Benedito.
O mastro do navio carregado de sal, afundado nos arrecifes, já desabou. Tá agora lá no fundo das preturas do oceano.
Agora tem esse tal de GPS. Antes pra cima e pra baixo era só olhando o Monte Pascoal e o Montinho, aquele mais pro norte. Distância mar adentro era tirada conforme os montes iam diminuindo, até desaparecer. Assim todo mundo sabia onde ficavam seus pesqueiros preferidos.
O naiá (7) quase sumiu. Mas Dona Renata plantou muitos por aí.



Foto 1 – Canoa de pequi Foto T. Abritta – Corumbau, Bahia, maio de 2010

A história está ficando comprida. Pra findar, vou logo dizer quem reencontrei por aqui: Nego Ulisses. Cheio de saúde, alegria, recepcionando-nos na sua venda, fachada colorida com letreiro Bar e Mercearia Wlissis (ver Foto 2). Não falei que este Wlissis era diferente?

Foto 2 – Bar e Mercearia Wlissis Foto T. Abritta – Corumbau, Bahia, maio de 2010

As sementes que foram semeadas
com certeza não vão acabar
Isto que escrevi aqui
serve pra qualquer pessoa
Isso eu posso provar (8)
______________________
Notas:
1. Pomba-rola da família Columbidae, Scardafella squamosa.
2,3. Marimbu, xandó, tucum e embira: palmeiras e árvores brasileiras.
4. Coqueluche.
5. Árvore própria para construção civil e naval.
6. Ferramenta de carpinteiro com lâmina afiada e cabo curto.
7. Indaiá-do-campo, palmeira com tronco subterrâneo, emergindo às vezes um pouco da superfície do solo.
8. Fragmento intertextual do Canto Corumbau: poesia da região, Honorato Deocleciano do Carmo – Publicado por Renata Bueno Mellão, Corumbau, Bahia, outubro de 2004.

Ver abaixo vídeo "Corumbau 1985":


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