Botswana, Foto T.Abritta, 2008

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Campeiros e Ponteiros.


Hoje, simplesmente deitei a pena, inepta para escrever uma linha sequer que não fosse plágio, mesmo que de meus próprios escritos anteriores. Essa dificuldade é uma decorrência da decomposição de nossos poderes constituídos, que viraram um “filme B”, onde o enredo é sempre o mesmo, variando apenas os sórdidos personagens com alguns remendos nos cenários desbotados.
Assim, para evitar que este lamaçal sujasse os pés, refugiei-me na boa literatura brasileira, alternando a leitura com incursões em meus documentos fotográficos, levando-me a revisitar lugares e pessoas que me marcaram.
Visitei a Dona Ermelinda com sua fala dos Sertões das Geraes. Escutei Seu Airão recitar a linguagem dos pescadores baianos. Naveguei pelas mãos de hábeis piloteiros por rios infinitos, indo do Araguari ao Fecho dos Montes, no baixo Paraguai. Escutei desde a triste batida da araponga, até a sinfonia noturna dos queixadas quebrando castanhas de jatobá. Provei a sopa paraguaia, o furrundu, deliciei-me com o cortado de palma e o godó. Senti o gosto amargo da cajuína.
Felizmente temos este rico e vasto universo cultural, um lastro para nossa sobrevivência, diante dos assaques generalizados que sofre a sociedade brasileira.
Aqui trago uma pequena fatia desta verdadeira cultura, pelas mãos dos campeiros pantaneiros, que, juntamente com muitos outros brasileiros, esquecidos nos fundões e grotões de nosso território, bombeiam o sangue por nossas veias.
Inspirado por um trecho literário de M. Cavalcanti Proença, de sua obra Manuscrito Holandês e nas palavras de um experiente ponteiro pantaneiro, projeto no papel algumas imagens (ver Figuras 1 a 3) que alegram os nossos olhos, com suas verdades e a poesia da luta dos pantaneiros em sua lida com os cavalos, o gado e a natureza:

“Encilhou o alazão devagar, esfregou o lombo, estendeu o baixeiro, colocou a carona, arrumou o lombilho, sacudindo para ajustar os suadores na carona, apertou a barrigueira, e o alazão olhou como quem diz: “Quer me torar pelo meio seu?” Pôs o coxinilho, alisou com a mão e passou a sobrechincha. Obrigou o cavalo a rodar em torno dele, meteu o pé na caçamba...”
M. Cavalcanti Proença

Figura 1 – Desencilhador. Fazenda Barra Mansa, Aquidauana – MS.
Foto T. Abritta, 2008.


“De certa feita cruzei o Paranazão. O povo todo apeava dos carros, espiando a bicharada entrando nas balsas. A federal (rodovia federal) parecia pintada de branco, estorvada pelo gado. Hoje, posso confessar que o apuro no peito só findou com a visão do peão de culatra chegando ao porto com o último animal desgarrado.”
Ponteiro pantaneiro que já liderou comitivas por todo este mundão de Deus



Figura 2 – Cabrestos, bridões, cordas e outras tralhas de montaria.
Fazenda Barra Mansa, Aquidauana – MS. Foto T. Abritta, 2008.


Figura 3 – Baixeiros, arreios, pelegos (coxinilhos) e baldrames.
Fazenda Barra Mansa, Aquidauana – MS. Foto T. Abritta, 2008.

Notas
-Apear: descer do animal
-Baixeiro: cobertor de lã utilizado para assentar o arreio sobre o lombo do animal.
-Baldrame: manta de couro colocada sobre o pelego
-Barrigueira: cinta que firma o arreio sobre o lombo do animal
-Bridão: ferro colocado na boca do animal para controlá-lo
-Cabresto: corda para puxar o animal
-Cajuína: aguardente de caju.
-Campeiro: trabalhador rural que lida com animais, em particular os que montam cavalos
-Comitiva: conjunto de peões que viajam levando rebanhos de gado
-Caçamba: estribo do cavalo.
-Carona: o mesmo que arreio.
-Cortado de palma: ensopado feito com o cacto xique-xique, da culinária dos faiscadores de diamantes da Bahia.
-Desencilhador: lugar onde são guardados os apetrechos de montaria, servindo também como lugar de encontro dos peões.
-Furrundu: doce feito com mamão verde.
-Godó: prato do sertão baiano, feito com carne cozida e banana verde.
-Peão de culatra: aquele que na comitiva de gado, segue no final fechando a boiada.
-Pelego: manta de pelo de carneiro para amortecer o impacto do cavaleiro sobre o arreio. Por analogia é também usado para designar líderes sindicais desonestos que amortecem as reivindicações dos trabalhadores facilitando a vida dos patrões.
-Piloteiro: condutor de pequenos barcos com motor de popa.
-Ponteiro: líder de uma comitiva.
-Sopa paraguaia: uma espécie de “quiche” brasileira que leva entre outros ingredientes milho, ovos, cebola.
-Suador: peça, geralmente de couro, colocada à frente da perna do cavaleiro, no arreio.

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