Botswana, Foto T.Abritta, 2008

domingo, 3 de junho de 2012

A Memória Intrusa


         Sempre que escrevo vem a pergunta: seria ensaio, crônica, conto, história curta?  Quem sabe, história curta resvalando para conto ou crônica?  Poderia ser também uma crônica-ensaio ou conto-ensaio.  No fundo a verdade é que os “chamados gêneros literários” estão esfacelados hoje em dia. 

         Mas gosto mesmo é de minhas “memórias-ficcionais” inspiradas nas andanças pelos fundões deste mundo. 

         Mas se literatura é espécie de estranhamento que nos leva a um maior conhecimento, vou tentar escritas mais elaboradas. 

Este texto será diferente.  Inspirado em conceitos como Mimésis, Arquétipos; incursões pela Filosofia, Teoria Literária e até Psicanálise. 

Será construído palavra por palavra, linha a linha, parágrafo por parágrafo.  Evoluirá tal a construção de uma pirâmide, pedra a pedra. 

         Difícil resolução.  Escrever sobre o que vejo por aí é sempre mais fácil. 



         A pilha de livros, recortes de jornais, artigos e anotações avoluma-se sobre a mesa.  Já começa a “escorrer” e derramar-se sobre o chão como um rio de papéis.  Naquele canto, livros de Neruda – páginas e mais páginas marcadas com pedaços de papel.  Adiante, obras de Saramago, ensaios de Susan Sontag e várias edições do conto A Galinha Cega, de João Alphonsus.  No sofá, pastas com compilações do poema O Guesa e até mapas, bem como obras sobre Geografia e até fotografias de viagem. 

         Muita confusão.  Tal peregrino de verdades duvidosas, procurava um rumo entre tanto papelório.  Acabei, não sei se por facilidade ou encantamento, seguindo os passos do nosso herói errante, O Guesa, imortalizado pelo poeta maranhense, nascido em 1883, Joaquim de Souza Andrade, o nosso Sousândrade, como gostava de ser chamado. 

         Assim iniciei esta jornada pelo Amazonas, passei pelo Maranhão, Rio de Janeiro, Europa, África e América do Norte.  Depois os Andes, Chile, Patagônia e finalmente terminei em Alcântara no Maranhão, a Ítaca deste herói. 

         Quando O Guesa declamava:



            “Titã o celerado – Cotopaxi / Lá das nuvens s’eleva alevantado / Tal um que, desviando, s’encontrasse / Não pertencer à terra, ou dela odiado: / É anel desertor, elo estupendo / Rebelde da cadeia, negrejante...”



         Um frio lembrava minha visita à base deste cone montanhoso há mais de uma década.  Cotopaxi em quéchua significa “O Colo da Lua” – com quase seis mil metros de altura é o mais alto vulcão ativo do mundo. 

         E O Guesa continua sua jornada rumo ao Sul, passando pelo Chimborazo.  Com aqueles mais de seis mil metros de altura, é o ponto mais afastado do centro da Terra por estar na região equatorial.  Quando por lá passei, a sensação era de gigante pedra negra, saindo das nuvens, quase entrando pelas janelas do avião. 

Pedras convivendo com os céus:



“Quando as estrelas, cintilada a esfera, / Da luz radial rabiscam todo o oceano... / Eis-me nos horizontes luminosos! / Eu vejo, qual eu via, os mundos Andes, / Terríveis infinitos tempestuosos, / Nuvens flutuando – os espetác’los grandes – / Eia, imaginação divina! abrazo / Do pensamento eterno – ei-lo magnífico / Aos Andes, que ondam alto ao Chimborazo, / Aos raios d’Ínti, à voz do mar Pacífico!”



         Será que Pablo Neruda não conhecia a obra de Sousândrade?  Será que ali não bebeu inspiração para seu Canto General ou mesmo para o que nomeio como sua “Geografia Poética”?



“Mineral e marinha é minha pátria como uma figura de proa, / talhada pelas duras mãos de deuses terríveis, / na Araucânia a selva não tem outro idioma que os trovões verdes, / o Norte lunário te oferece sua fronte de areia sedenta, / o Sul a coroa da fumaça nascendo das cicatrizes vulcânicas, / e a Patagônia caminha agachada no vento / até que as estepes da Terra do Fogo elevaram a última estrela / e ascendem com mãos imóveis o Polo Sul no céu...”



         E Saramago?  Ensaio Sobre a Cegueira é uma parábola da sociedade atual, degradada, egoísta, injusta e violenta.  Esta não é exatamente a temática e as ideias básicas do conto A Galinha Cega, de João Alphonsus, escrito em 1931? 



E aqui entra Susan Sontag.  Folheio Questão de Ênfase, lendo atentamente o ensaio Vidas Póstumas: O Caso Machado de Assis:



            “Machado seria mais conhecido se não fosse brasileiro e se não tivesse passado toda sua vida no Rio de Janeiro – se, digamos, fosse italiano ou russo, ou mesmo português.” 

            “Mais notável do que sua ausência no palco da literatura mundial é ter sido ele muito pouco conhecido e lido no resto da América Latina – como se ainda fosse difícil digerir o fato de que o maior romancista produzido neste continente tenha escrito em português e não em espanhol...”

            “É muito mais provável que um escritor desses países conheça qualquer das literaturas europeias ou de língua inglesa do que a literatura do Brasil, embora os escritores brasileiros tenham uma consciência apurada da literatura hispano-americana.  Borges, outro escritor da mais alta grandeza produzido pelo continente, parece nunca ter lido Machado de Assis...  Memórias Póstumas de Brás Cubas só foi traduzido para o espanhol na década de 1960, oitenta anos depois de ter sido escrito e uma década depois de ter sido traduzido (duas vezes) para o inglês.” 

            “Com tempo bastante, vida póstuma bastante, um grande livro termina por encontrar seu lugar de justiça.” 



         Muitas interrogações, nenhuma resposta. 

Adormeço. 

Do passado, lá do ano 1877, a amargura de Sousândrade a respeito do seu poema O Guesa – escrito durante trinta anos enquanto viajava pelo mundo afora: “Ouvi dizer já por duas vezes ‘que o Guesa Errante será lido cinquenta anos depois’; entristeci – decepção de quem escreve cinquenta anos antes”.

         Se pudesse falar dormindo responderia: Grandeza de Ezra Pound, pungência de T. S. Eliot... Publicado em Londres, depois execrado e expulso da Inglaterra por críticas republicanas à rainha Vitória.  Mas as errâncias de seu herói foram seguidas por Orfeu, de Jorge de Lima; Macunaíma, Mitavaí. 



         Acordo pela madrugada com palavras tão reais que deveriam vir de um passado esquecido:

“parece um canhão da Marinha... eu era coroinha na Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores.”



         Pela manhã, rápida olhada no papelório, já invadindo o banheiro, escorrendo pela sala, chegando à porta da cozinha, tal monstruoso ser crescendo descontroladamente. 

         Parto rumo ao Centro do Rio. 



         O balaço de canhão atravessou o teto da Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores, encravando-se na parede da sacristia, em pleno Centro do Rio.  O responsável foi o “24 de Maio”, ex-Aquidabã – esta mania de mudar nomes não só de ruas como de navios –, por ocasião da Revolta da Armada em 1893.  Mas foi punido severamente com um certeiro torpedo em seu casco, como atesta a foto de Juan Gutierrez da Coleção do Museu Histórico Nacional (V. Figura 1). 


Figura 1 – Efeito de um torpedo no encouraçado 24 de Maio durante a Revolta da Armada, Rio de Janeiro, 1893/1894.  Foto de Juan Gutierrez da Coleção do Museu Histórico Nacional.  Foto em Albúmem.


         Interessantes histórias, mas não chegaram a abrir minha memória profunda.  Em todo caso foi uma importante informação: o primeiro registro histórico de “bala perdida” nesta cidade, onde somente no ano passado (2011) oitenta e oito pessoas foram vítimas deste “fenômeno” que causa diariamente mortes e sofrimentos. 



         Entro em casa.  Dificuldades ao abrir a porta – pontas de papeluchos saindo por baixo.  Aquele desabamento geral de livros acabou revelando camadas internas já esquecidas.  Estico a mão e pego A Revolta da Chibata, de Edmar Morel.  Abro na dedicatória e fico pensando: cassado e preso por revelar a verdade de fatos ocorridos em 1910 (V. Figura 2). 


Figura 2 – A Revolta da Chibata, Edmar Morel.



         Vou lendo trechos aleatoriamente...



            “As guarnições dos navios revoltados intimou as fortalezas de Santa Cruz, Laje e São João a não atirarem, sob pena de serem arrasadas.”



            “Os couraçados Minas Gerais e São Paulo e o scout Bahia sondaram o ânimo das fortalezas de Villegaignon e da Ilha das Cobras, abrindo ligeiro fogo de artilharia.  As fortalezas não deram sinal, permanecendo mudas como peixes...”



            “Ao raiar do dia, o cruzador Barroso e o caça-torpedeiro Tymbira tentaram resistir tiroteando com o Minas Gerais.  Este, inquieto, como fera cutucada, vomitou ferro, emudecendo seus atacantes.”



            “Vitoriosos, o República, o Floriano, o Deodoro, o Primeiro de Março e o Benjamin Constant formavam uma linha de ferro desde a Praia de Santa Luzia até a Ilha Fiscal.  Mas o Minas Gerais e o São Paulo evoluíam como dois leões enjaulados.  Ora o primeiro vinha até junto do segundo, para depois retroceder, volteando sobre si mesmo, navegando de volta em direção ao fundo da Baía de Guanabara; ora era o São Paulo que fazia manobra inversa, navegando depois em direção à barra.”



         Ao reler a palavra tiroteando, estranha sensação percorreu o corpo.  Era como se pronunciasse Shazam! (*). 



         Os dois meninos acompanhados do pai desceram do lotação e se encaminhavam para O Fluminense Futebol Clube, em Laranjeiras.  Tinham entre sete e nove anos, calças curtas, sapatos pretos, meias soquete, camisas de Jersey (**), cabelos príncipe Danilo.  O pai vestia um terno de linho marrom claro, Quina Petróleo nos cabelos.  Debaixo do braço um comprido objeto embrulhado com papel pardo. 

         Ao chegarem são recebidos pelo homenageado, novo Campeão Sul Americano de Tiro – modalidades e categorias deste campeonato não interessam.  O importante é que vieram atiradores de vários países e estados brasileiros para festejarem no Estande de Tiro do Fluminense este feito.

         O pai foi logo desembrulhando a Winchester 44 e falou: “estou pronto para tirotear.”  Alguns olharam com ares de deboche.  Afinal eram uma elite, armas e equipamentos especiais, tudo acomodado em vistosos estojos de madeira forrados com veludo.  

         O pai deu o primeiro tiro, ajustou a altura da alça de mira – para corrigir a vertical – e o tiro final, com a horizontal também já ajustada: “podem abaixar o alvo.  Tá lá na mosca!”

         Línguas de fogo de dois palmos saíam da arma, estrondos ribombavam nas montanhas. 

         Todos pasmos, em meio à fumaceira, aproximaram-se assustados: “voltamos ao velho oeste americano!”, “explodiu o paiol do Exército?”, “parece um canhão da Marinha. Eu era coroinha na Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores em 1910...”

         Neste dia o Fluminense parou.  Todo mundo amontoado para a comemoração jamais vista, ou melhor, ouvida. 

         Ficaram ainda mais assustados quando os garotos atiraram: “encosta bem a arma no ombro e abre as pernas, uma para frente, outra para trás.  Se não firmar bem, pode quebrar um osso com o coice!  Atira que eu seguro para você não cair.  Abre a boca...”

         Pouco a pouco os atiradores foram tomando coragem, abandonaram suas armas especiais e se divertiram tiroteando livremente.  Só não conseguiam atingir o alvo, muito menos a mosca!

         Acabada a munição, o homenageado falou: “não disse que teriam uma surpresa!”  Alguém retrucou: “é impressionante que nem esquenta o cano! 



         A propósito, sempre que escutava um zumbido de serra elétrica, vindo de longe, sentia uma sensação agradável e reconfortante.  Hoje escutei e lembrei-me quando o amolador de facas entrava na rua de minha infância: todos corriam para ver sua demonstração musical, tirando melodias de uma lâmina de aço encurvada que atritava na roda de amolar.  Depois ia se afastando, o som sumindo, sumindo, até desaparecer. 

         Memória Intrusa!



Notas:

(*) Palavra mágica pronunciada pelo Capitão Marvel – super-herói dos anos 50 – para adquirir seus super-poderes. 

(**) Tecido macio originalmente formado por composições de algodão, seda ou lã.









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