Botswana, Foto T.Abritta, 2008

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Stromboli


          Sempre que vejo aqueles pedaços de lava solidificada repousando nas prateleiras da minha estante me lembro de Stromboli.  Esta, a vantagem de ser um “carregador de pedras”.

Era para escalarmos o vulcão Etna, na Sicília.  Nem saltamos do trem – todos os caminhos interditados, pessoas sendo evacuadas.  Diziam que era uma das maiores erupções dos últimos anos.  A fumaceira cobria até os trilhos.

          O bilheteiro do trem falou num bonito Siciliano – língua que ainda sobrevivia naqueles tempos: se querem ver vulcões, lembrem-se do filme Stromboli, com Ingrid Bergman.

          E lá fomos para as terras de Eolos, o rei dos ventos.

          Contornamos a Sicília, deixando para trás, Messina, chegando a Milazzo.  O gigantesco aerobarco sairia em segundos.  Nem tempo para um café. 

          A primeira parada nas Ilhas Eólias foi em Vulcanello.  Um porto ao lado de pequena cratera por onde saía lava que escorria para o mar.  As águas ferviam, cheiro de queimado no ar.  Pessoas desembarcavam, outras entravam, totalmente indiferentes – para nossa surpresa – diante do vulcão ativo enfiado na tranquila cidadezinha.

          Acabamos permanecendo uns dias em Lípari, verdadeiro mosaico de civilizações.  Do alto da ilha observava o fumarento Monte Etna.  Dava até para escutar Vulcano e os ciclopes-ferreiros trabalhando em suas forjas.

Agora, distante, um vulcão apenas belo e não tão ameaçador.

 
          Depois de quase três horas com o aerobarco voando sobre as águas chegamos a Stromboli.  A primeira parada foi quase ao lado da Sciara del Fuoco (Esteira de Fogo) – imensa ladeira que descia uns oitocentos metros, por onde escorria a lava do vulcão que explodia a cada instante, lançando jatos vermelhos e fumaça. 

          Dava arrepios.  Em meio ao vapor das águas ferventes, surgiu um pequeno barco a remo, trazendo passageiros da vila próxima.  Se não fossem seus sorrisos, eu os imaginaria sendo evacuados de uma catástrofe.

Depois rumamos para o porto principal, do outro lado da ilha.  Apenas quatro passageiros desembarcaram: eu, Cristina, um homem que trabalhava na Austrália e vinha visitar a família e outro empurrando um carrinho com caixotes vazios.  Viajar fora de temporada tem vantagens.  Nada de multidões de turistas.  Verdade?

O barco foi se afastando enquanto o marinheiro que recolhia a âncora, como se adivinhasse meus pensamentos, falava ironicamente: sim, tem muitos hotéis, restaurantes, bancos...

 

          Um casario branco se espalhando entre rochas negras, praias negras.  Entre barcos repousando no negrume da terra, um pescador solitário costurava sua rede.  Única pessoa visível.  Irritado, deixava claro não gostar de intrusos.

          O jeito foi subir lentamente as ladeiras de casas brancas, becos estreitos.  Verdadeira cidade fantasma: igreja, delegacia policial, lojinhas, tudo fechado.  Ninguém à vista.  Pelo menos poderíamos armar um bivaque junto à porta da igreja e, se sobrevivêssemos à noite de inverno, partir no próximo barco.

          Quase anoitecendo, o frio aumentando, um ruído estrondoso quebrou o silêncio.  Enorme moto, entre roncos do motor, aceleradas fumacentas, um garoto falou alguma coisa.  Entendemos apenas duas palavras: campito e campanello – chaves do enigma que nos “salvaria”.

          Andamos apenas cem metros ladeira acima e, nos fundos de uma pequena pracinha, encontramos uma trave de futebol já apodrecida.  Finalmente o campito!

          O resto foi fácil.  Mais acima, uma senhora agitava um lampião e foi logo dizendo: se o portão estiver fechado aperte o campanello.  Eu e meu marido moramos lá embaixo depois da plantação de oliveiras.  Vocês ficam ali naquele quartinho.  Comida não tem.  As azeitonas deram apenas para comprar os mantimentos do inverno.  Durmam e rezem, que Deus ajuda.

 

          No quarto cabia apenas a cama.  Ou se deitava ou se abria a porta dupla, para, sentado na cama, colocar os pés no pó de lava e cinzas, observando as ritmadas explosões do vulcão no alto da montanha – o medo poderia disfarçar a fome.  Algumas eram mais fortes, com o jato de fogo colorindo o céu.  Ficava também pensando no relativismo do desenvolvimento tecnológico: aquela era a primeira campainha instalada em uma residência naquela ilha.  Lembrei-me que, quando criança, todos nós íamos ao prédio da Sears, no Rio de Janeiro, para conhecer a novidade da escada rolante.  Falamos línguas diferentes, mas somos todos iguais.

 

          “Que tal escalar o vulcão?  Não temos lanternas.  Mas é noite de lua cheia.  E se o tempo ficar nublado ou o vento mudar de direção cobrindo tudo com cinzas?  Dizem que isto é raro acontecer.  E o frio lá em cima...?”

          Percorremos a viela estreita.  Alguns latidos de cachorro, poucas luzes acesas.  No final do beco começava uma trilha, no início calçada, que ia subindo para o vulcão. 

Para trás piscava o farol no rochedo Strombolicchio, ficando cada vez mais longe e menor com a altura.  Na frente, os jatos de lava ficavam maiores e mais vermelhos.  Vento e frio aumentando.  Acabamos perdidos em meio à vegetação queimada.  A encosta ficava cada vez mais íngreme e perigosa.  Metro a metro fomos retornando, totalmente cobertos de cinzas, mãos feridas de tanto segurar nas raízes e arbustos ressequidos.  Alívio apenas quando caminhamos novamente pelas pedras da trilha principal. 

          Mal dormimos e um estrondoso motor nos despertou.  A mesma moto do dia anterior, agora pilotada por um senhor e com a garupa cheia de caixotes de uva.  Levamos um caixote, mas o agricultor foi enfiando dentro da minha camisa outros cachos: é bom ter bastante comida – parecia adivinhar que este seria nosso alimento nos próximos dias.

          Finda a refeição, nova caminhada.

          Agora mais experientes, não confundiríamos os rastros das águas da chuva com trilhas.  Levávamos casacos e panos molhados cobrindo o nariz.  Sabíamos também calcular altura, direção e distâncias, riscando nas cinzas do solo o triângulo ensinado pelo agricultor:  Fácil.  Num dos vértices Strombolicchio, no outro o farol na encosta Labronzo e no último, claro, o vulcão: se o vento estiver muito forte, não dando mais para ficar em pé, retornem imediatamente. 

 
          Subimos a uma altura com mais de seiscentos metros.  Menos de duzentos metros da cratera.  Sentados, sentíamos o chão tremer com as explosões, no rosto o calor da Sciara del Fuoco, nos olhos a amplidão do Mar Tirreno. 

No coração, a emoção de estar tão alto, a vila tão pequena lá embaixo, mas tão perto do centro da Terra.

 
          Na hora do embarque, com o já conhecido ruído de moto, a despedida: o garoto, seu pai – o agricultor – e o mal humorado pescador, agora sorrindo, acenando e gritando: salutamu, salutamu, salutamu!

 
          Na cantina do barco um passageiro pediu:

Vulissi nu cannolu câ ricotta.

Apenas repeti: vulissi nu cafè.


          Enquanto bebia o tão esperado café, pensava: por que o mundo tem que ser igual?  Afinal, é esta diversidade que nos propicia descobertas maravilhosas.

 
Texto a ser publicado brevemente no livro “Os Meus Papéis”

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