Botswana, Foto T.Abritta, 2008

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Arqueologia Fotográfica

Publicado no Montbläat, outubro de 2007.


          Na Grécia Clássica os mortos eram sepultados de uma forma ritual, criando-se uma réplica do falecido na forma de um corpo insubstancial chamado Êidolon.  Para aqueles que morriam longe da pátria, dos parentes ou quando o corpo não era encontrado, construía-se um túmulo vazio com uma estátua ao lado, o Kolossós. Este Colosso, como o próprio morto, é um duplo do vivo, atraindo a Psiquwe vagante transformando o morto em Êidolon.  

    
                                                       Foto T.Abritta, 1996.

Figura 1 - Estátuas representando Amenófis III (1417-1379 AC) - Tebas, Egito.  Os gregos da antiguidade clássica diziam ser um Kolossós do mítico rei Menon, desaparecido na Guerra de Troia e até hoje estes gigantes são conhecidas como Colossos de Menon.

          Em certo sentido a fotografia funciona como um duplo do fotografado, um singelo Kolossós em papelPor outro lado, a sua deterioração física lembra-nos não da transitoriedade da vida como da fragilidade e constante transformação do mundo material.  Uma foto antiga, mesmo deteriorada e de baixa qualidade em sua concepção, sempre será considerada uma preciosidade ou obra de arte, pois é vista como um  registro arqueológico, uma ruína que sobreviveu a uma deterioração temporal.  Esta ponte entre História, Arqueologia e Fotografia fica mais clara comparando-se a visão mais técnica de um arqueólogo com o olhar poético de uma escritora.

“Os resultados mais correntes da conduta humana, os dados arqueológicos mais vulgares, podem chamar-se artefatos, coisas feitas ou desfeitas por uma deliberada ação humana”, Gordon Childe.

“As fotos são, é claro, artefatos. Mas seu apelo reside em também parecerem, em um mundo atulhado de relíquias fotográficas, ter o status de objetos encontrados – lascas fortuitas do mundo, Susan Sontag.

A História da fotografia no Brasil
          A História da Fotografia no Brasil confunde-se com a História da Fotografia UniversalPoucos meses depois de Daguerre anunciar sua invenção, na cidade de Paris, em 19 de agosto de 1839, o abade francês Louis Compte, que era capelão da fragata L’Orientale, desembarcou em território brasileiro, produzindo aqui os primeiros daguerreótipos em 17 de janeiro de 1840.  Entusiasmado pela nova técnica, um menino de apenas quatorze anosque viria a ser o patrono da fotografia no Brasil – adquiriu em março deste mesmo ano um equipamento de Daguerreotipia.  Este menino era nada mais nada menos que o Imperador D. Pedro II, que formou posteriormente uma grande coleção de fotografias, doada à Biblioteca Nacional por ocasião de seu banimento do Brasil.  Daí em diante a história não parou mais, fotógrafos viajantes registraram cidades, pessoas, paisagens e cenas do cotidiano em todo o Brasil, legando-nos um inestimável patrimônio iconográfico.  Em 1905 a Casa Marc Ferrez, na Rua São José, no Rio de Janeiro, vendia cartões postais, equipamentos e apetrechos fotográficos e em 1912 passou a representar e vender as chapas fabricadas pelos irmãos Lumière, os precursores do cinemaOutro fato importante é que em 1921 Conrado Wessel criou em São Paulo a primeira fábrica brasileira de papel fotográfico.

                                                                                                    Foto T.Abritta, 2005.

Figura 2 – Placas fotográficas vendidas no Rio de Janeiro
no início do século vinte.

Desídia e destruição
          Infelizmente o nosso patrimônio fotográfico encontra-se prestes a desaparecer, com os constantes roubos em centros culturais e museus que lutam com a falta de verbas e abandono, pois no Brasil, nos últimos anos a cultura não é levada a sério, sendo considerada uma atividade incômoda, por favorecer consciência e espírito crítico.  A desídia de nossos governantes é responsável pela destruição de nosso patrimônio cultural, encontrando-se desaparecidas no presente momento mais de 8.000 fotos históricas, mapas e gravuras; cerca de 2.000 livros raros e insubstituíveis; para não falarmos das mais de 1.000 obras sacras que ninguém sabe ninguém viu.  No tocante à fotografia, somente da Biblioteca Nacional foram roubadas 750 fotos, incluindo parte da coleção Thereza Christina Maria, doada por Pedro II e tombada em 2003 pela Unesco comomemória do mundo”.  Mas, para a Delegacia de Meio Ambiente e Patrimônio Histórico da Polícia Federal, uma estimativa de mil obras furtadas nesta biblioteca é ainda muito conservadora (ver O Cerco se Fecha, Revista de História da Biblioteca Nacional 23, agosto de 2007).  Outra perda irreparável foi o roubo de 1.500 fotos – 19 de um total de 27 álbuns de fotografias – de Augusto Malta do acervo do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.  O ataque aos nossos museus e centros culturais intensificou-se nestes tempos de mensalões, apagão ético de nossa intelectualidade e o vergonhoso silêncio em nossos meios acadêmicos, que a tudo tolera por interesses inconfessáveisSomente na administração do Ministro da Cultura Gilberto Gil foram saqueadas: a Biblioteca Nacional, o Palácio do Itamaraty, o Museu da Chácara do Céu, a Biblioteca da Escola de Belas Artes da UFRJ, a Biblioteca da Fundação Oswaldo Cruz, para não falarmos também de museus estaduais ou municipais como, por exemplo, o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco e a Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo.  Diante deste cenário trágico, o governador da Bahia, Jaques Wagner, do PT, resolveu e declarou que “vai introduzir o que o Ministro Gilberto Gil fez na federação, cortando privilégios e democratizando a cultura”.  Como resultado cortou os recursos de diversos centros culturais, como a Casa de Jorge Amado, abandonando a própria sorte milhares de documentos sobre a História do Brasil, da Bahia e da grande literatura deste escritor
          Voltando ao início de nosso artigo, é como se perdêssemos o Colossos, os artefatos e as ruínas arqueológicas ou, indo mais além, como os nazistas que apagaram todos os vestígios da existência da cidade de Lídice, na antiga Tchecoslováquia.  No Brasil estamos perdendo não o nosso patrimônio cultural, como também os registros de sua existência pretérita.  É como se demolissem o Coliseu em Roma para construir uma quadra para ensaios de escolas de samba, a pretexto de “cortar privilégios” e “valorizar a cultura popular”. 

O tesouro da lata
          Com toda esta política cultural de terra arrasada, não vamos esmorecer nas nossas denúncias e continuaremos “dando nome aos bois” daqueles que confundem cultura com marketing de política populista em busca do voto fácil e irresponsável.  Neste quadro trágico, chegou recentemente do nosso vizinho Uruguai a bela notícia da sobrevivência de um acervo fotográfico que sobreviveu à truculência do poder ditatorial
          No 6º Festival Internacional de Cinema de Arquivo, em setembro último, no Rio de Janeiro, fomos brindados pela incrível história do fotógrafo uruguaio Aurélio Gonzáles, sob a forma de exposição de suas fotos, conversas, palestras, entrevistas e apresentação de um documentárioEste fotógrafo trabalhava em Montevidéu, para o jornal comunista El Popular, na Avenida 18 de julho, quando em 1973 o prédio foi invadido pelas forças da ditadura militar.  Gonzáles guardou os milhares de negativos de seus anos de trabalho, em uma tubulação no 12º andar do edifício e se escondeu no parapeito, salvando a sua vida e as fotos da brutalidade da repressãoMas o fato interessante é que ao retornar ao Uruguai, trinta e três anos depois, as latas com os negativos tinham desaparecido do esconderijo original.  Entretanto foram encontradas graças a um menino com treze anos de idade na época, que transferiu o “tesouropara uma parede na garagem do prédio.  Assim, milhares de negativos acondicionados em latas foram salvos, documentando mais de vinte anos de História, em uma verdadeira arqueologia fotográfica, conhecida na época como “o tesouro da lataAcontecimentos como estes nos enchem de esperanças, pois têm a magia de um conto encantado em que o bem e a cultura vencem o mal e a ignorância.



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