Botswana, Foto T.Abritta, 2008

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Foto & Retoque

Publicado no Montbläat em maio de 2008.

          Ao folhearmos revistas e jornais nos deparamos com lindas imagens.  Mulheres com pernas longas, silhuetas perfeitas e peles sem rugosidades, pintas ou manchas, o que nos lembra aquele comercial dos anos 60: que rostinho tão lindo...ela usa ponds.
          Isto, em parte, é devido à influência da propaganda nos meios de comunicação, onde um rosto enrugado, mesmo em uma reportagem policial, pode “contaminar” a beleza de um anúncio na página seguinte.  Logo, todas as fotografias publicadas devem serapresentáveis”, usando programas de manipulação de imagens como Photoshop, Lightroom ou Photomatix que fazem verdadeiros milagres visuais.  Mas, neste culto a uma suposta perfeição estética, deveriam ser poupadas imagens clássicas ou que tenham grande significado histórico de modo a não falsearmos a verdade.
          A revista Veja de 23 de abril de 2008, no artigo Os pobres no país dos ricos, comete uma destas tentações, fazendo uma maquiagem digitalbase corretiva, de arroz, retoques na sobrancelha e cabelo, baton etc. – na clássica e dramática fotografia Migrant Mother, da fotógrafa americana Dorothea Lange, que foi usada para ilustrar o texto (V. Figura 1).  No artigo Um mundo de imagens: “photoshop” analógico, apresentamos não o original desta fotografia de 1936, como comentamos outros atentados a esta obra artística que documenta o sofrimento humano.
          Até a tradicional publicação da esquerda intelectualizada francesa Le Nouvel Observateur não resistiu a esta “onda moderninha” e estampou em sua capa, no início deste ano, uma fotografia da escritora feminista Simone de Beauvoir, nua de costas, penteando os cabelos após tomar banho em um ordinário banheiro parisiense. 
          Antes de continuarmos a nossa discussão sobre o retoque fotográfico, cabe salientar o comportamento pouco ético desta publicação, que no ano em que se comemora o centenário de nascimento desta escritora, falecida em 1986, sua obra seja representada pelo seu traseiro com o intuito de atrair leitoresComo não entraremos nesta discussão, vamos apenas reproduzir alguns comentários dos franceses a respeito deste fato: uns dizem que Simone foi reduzida a uma Paris Hilton dos anos 50, outros elogiam a sua plástica, considerando-a bem conservada com quarenta e quatro anos, e tem aqueles que iradamente exigem a publicação do traseiro de Sartre ou a fotografia de Marguerite Yourcenar de biquíniPara não falarmos das críticas mais sérias, que discutem o mito da beleza, feminilidade e produção intelectual.


Figura 1 - Maquiagem digital na clássica e dramática fotografia
 Migrant Mother, publicada na revista Veja.

          Voltando ao tema mais ameno da fotografia, a imagem original (V. Figura 2) usada no Le Nouvel Observateur foi obtida em 1952 e tem uma história interessante.  Simone estava com seu amante, o jornalista e escritor norte americano Nelson Algren – uma de suas grandes paixões – em um daqueles diminutos apartamentos parisienses, tendo ido tomar banho no banheiro do vizinho, o fotógrafo americano Art Shay, que aproveitou a oportunidade para a fotografia não autorizada.  Com o tempo tudo foi esquecido, até que Art Shay, hoje com oitenta e seis anos, redescobrisse este negativo que acabou na capa desta publicação. 



Figura 2 – Simone de Beauvoir.  Foto Art Shay, Paris 1952.

          A foto publicada foi adaptada aos padrões de beleza de hoje, criando uma Simone maismalhada”, com uma silhueta mais afinada, quadris reduzidos e uma pele perfeita.  O banheiro foi “higienizado”, disfarçando-se tanto o vaso sanitário como o papel higiênico e “clarificado”, de modo a perder seu ar ordinário.
          Para nós este é mais um exemplo de distorção histórica, falseando um documento da vida doméstica parisiense e um desrespeito à autora de O Segundo Sexo.  De qualquer maneira, uma Simone restaurada ou não, desmente aquela infâmia de Berlusconi de que as mulheres de esquerda são feias e as de direita são bonitas.
          Para Art Shay restou a glória das exposições programadas de suas fotografias, mas no íntimo ele deve ter dito je suis désolé, pois, como ele próprio declarou, se soubesse que esta foto alcançaria o valor de mercado que tem hoje, teria fotografado todo mundo nu, não Simone como Algren e seus amigos.  


Um comentário:

  1. Teócrito,

    Quando eu assisti à bela exposição da revista O CRUZEIRO no IMS, vi o quanto a boa fotografia pode ser feita sem os recursos da tecnologia atual. O objetivo era jornalístico.
    Hoje, até a TV possui lentes especiais que fazem verdadeiras plásticas nos atores.
    Tudo isso tem por objetivo criar um padrão de beleza e idolatria da juventude. No entanto, toda idade tem sua beleza. Sabedoria é viver bem cada uma delas.

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