Botswana, Foto T.Abritta, 2008

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

A Nuvem Negra



          Um fato que muito me chamou a atenção durante a última visita do Papa ao Brasil, foi que Bento XVI e os integrantes da Cúria Romana se emocionaram durante um encontro com jovens, diante dos milhares de flashes dos telefones celulares e câmeras digitais voltadas em sua direção na captação daquele momento único.  As luzes dos dispositivos digitais eram como velas da modernidade que iluminavam aqueles religiosos que, além de comandarem a Igreja Católica, são chefes de estado e portanto responsáveis pelos terríveis rumos políticos do mundo contemporâneo.  Espero que estes jovens, com a sua pureza tenham suavizado os corações dos visitantes, endurecidos pelas disputas palacianas e jogos políticos que os levaram à direção do Estado do Vaticano.  É interessante observar, em face deste espetáculo de optoeletrônica, que o primeiro registro escrito da tecnologia óptica vem da Bíblia.  Os primeiros espelhos eram feitos de placas de pedra polida e depois de placas polidas de cobre ou bronze e são descritos na antiguidade bíblica em Êxodo 38:8, onde se relata como Beseleel construiu um dos objetos do altar do santuário em Jerusalém: Fez uma bacia de bronze e a sua base com os espelhos das mulheres que serviam à entrada da Tenda de Reunião.  Se aqui temos um caso histórico de tecnologia reversa, onde valiosos espelhos transformaram-se em fundos de bacias, nos dias de hoje assistimos a grupos ditos religiosos colocando em risco as conquistas da ciência moderna com teorias como Criacionismo, Design Inteligente e toda a sorte de mistificações, para tentar dar um cunho científico a opções religiosas.  Isto para não falar dos ataques às pesquisas de células tronco e às políticas públicas de combate às doenças sexualmente transmissíveis.
          Não existe antagonismo entre Religião e Ciência, que enquanto a primeira é uma opção racional a um sistema de dogmas, o que é sempre um passo difícil, a segunda tem propostas mais modestas, que é tentar explicar a natureza em um universo de pensamento mais restrito.  A ciência trabalha com hipóteses, experimentações, teorias e confirmações práticas: essencialmente o método científico que marcou o início da ciência moderna com Galileu Galilei no início do século XVII. 
          O Criacionismo, quando busca um fundamento científico, naufraga completamente, que, se o mundo foi feito em seis dias de uma maneira sobrenatural por Deus, é impossível encontrar indícios deste evento, e os que teimam nesta direção comportam-se como se estivessem no século XVIII, afirmando que os fósseis de animais extintos eram simples pedras com formas curiosas.  Entretanto muito esforço tem sido feito por esta pseudoteoria, inclusive material, aproximando o Criacionismo de uma prática mais comercial e política


Trilobita, um fóssil de 550 milhões de anos – Foto T.Abritta

          O Design Inteligente é uma forma disfarçada de Criacionismo, pois da mesma maneira tenta trazer o sobrenatural para dentro da Ciência.  Esta teoria é baseada em que a Evolução é extremamente complexa para ter acontecido ao acaso, tendo portanto uma certa racionalidade que vem da razão criativa de Deus, o Designer Inteligente.  Esta teoria foi revigorada com um artigo do cardeal Christoph Schoenborn, publicado em 2005 e agora com o lançamento na Alemanha, por Bento XVI, do livro Schoepfung und Evolution (Criação e Evolução), onde a teoria evolucionista de Charles Darwin é criticada com os mesmos  argumentos anteriores de que a evolução  tem uma racionalidade não explicada pela seleção aleatóriaAqui cabe um exemplo simples e interessante que é o do vírus Ebola, por exemplo.  Esta verdadeira substância química vivente sofre mutações contínuas, o que garante a sua sobrevivência, que não consegue trilhar um caminho evolutivoOnde está a racionalidade evolutiva sobrepondo-se às mutações aleatórias neste caso?
          Temos também os pensadores que aparentemente reconhecem o universo de trabalho da Ciência, mas freqüentemente buscam fundamentos científicos para as suas indagações teológicas.  Uma das áreas científicas mais visadas é a Cosmologia Física com suas teorias da origem, evolução e expansão do Universo e com os conceitos de matéria, energia, tempo e o próprio espaço.  Estas teorias são baseadas em parâmetros e medidas da densidade média do universo, sua velocidade de expansão, temperatura da radiação de fundo, medidas do deslocamento para o vermelho do comprimento de onda da luz etc.  Para aqueles que não têm uma formação científica mínima, esta área de estudo soa um tanto fantástica ou até sobrenatural, e não resiste à clássica pergunta do que existiria antes do chamado “Big Bang”, uma pergunta que está simplesmente fora do universo de estudo da Ciência, pois esta trabalha com condições iniciais definidas e parâmetros mensuráveis.  Nos anos 40, a hipótese mais aceita sobre o Universo, era de um sistema estacionário que sempre teve a mesma aparência como a observada agora, onde o movimento de recessão das galáxias ocorria apenas em escalas locais.  Esta teoria foi proposta pelo astrônomo e físico inglês Fred Hoyle (1915-2001) e colaboradores, mas não resistiu à evolução científica.  A teoria do universo estacionário era menos atraente do ponto de vista da especulação filosófica e tinha portanto o mérito de dar uma certa tranqüilidade para a Ciência trabalhar em paz.  Hoyle também escrevia livros de divulgação e ficção científica, onde expressava livremente algumas de suas ideias.  Em um destes livros, A Nuvem Negra, a ficção versa sobre uma forma de inteligência não biológica, onde informações eram armazenadas e transmitidas por processos eletromagnéticos no interior de nuvens que podiam dividir-se, conectar ou se desconectar umas das outras como em uma grande rede de computadores.  Na história estes sistemas pensantes sempre existiram, não tendo começo nem fim, como a estrutura do modelo de Universo estacionário.  No desenrolar da trama, uma destas nuvens negras estacionou entre o Sol e a Terra para absorver a energia solar, quase acabando com a vida em nosso planetaMas felizmente esta gigantesca matéria pensante partiu em busca de informações que recebeu dos confins do universo e que a abalaram seriamente.  Este singelo romance mostra que o importante é que todos tenham a liberdade para procurar respostas às suas dúvidas e indagações.  Até aqueles que repousam na tranqüilidade de suas inabaláveis convicções devem manter uma janela aberta, como a nossa nuvem negra, que partiu em busca de um inimaginável desconhecido, deixando a luz iluminar a Terra, a Ciência e a Cultura.

Publicado no livro Memória, História e Imaginação, 2010.



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