Botswana, Foto T.Abritta, 2008

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Aparições Recorrentes: sétimo capítulo de Jequitinhonha.


Se na semana passada foram as assombrações rurais, hoje foi dia das assombrações urbanas.  E que dia!  Não envolveu apenas a pequena família de Seu Gonzaguinha.  Centenas de pessoas correndo por ruas e becos, sempre perseguidas pelo morto-vivo.  Um verdadeiro deus-nos-acuda.  Ainda escreverei um tratado sobre o sobrenatural. 
Muitos tentam desacreditar os fatos, afirmando serem frutos do medo, ignorância, ou mesmo turvação da mente pelo álcool. 
Mas nestes becos e ladeiras escuras, sempre escutamos histórias de arrepiar os cabelos.  Afinal a antiguidade sempre guarda um passado de morte, sofrimento e injustiças, que o tempo não consegue apagar. 
Em Minas é comum encontrarmos majestosas igrejas em meio a pequenos povoados.  Uns dizem que o fausto e a riqueza dos templos seriam para apequenar o homem diante do poder divino.  Para outros, estas igrejas protegem a população, afugentando os espíritos malignos das montanhas.  E não vamos dizer que são apenas histórias de gente boba.  No Rio de Janeiro, antiga cidade colonial, imperial e capital nacional, ainda podemos ver um velho oratório do século dezoito nos fundos da Igreja do Carmo.  Estes oratórios ficavam permanentemente iluminados, não só mostrando a devoção dos fiéis, como espantando seres diabólicos que vagavam pelas noites das ruas escuras.
O jeito é aprendermos a conviver com as crenças e histórias que fazem parte de nossa cultura. 
Por exemplo, aqui próximo tem um lugarejo que nunca conseguiu progredir.  O povo sempre pobre e amarelado, crianças barrigudas, cheias de vermes.  A explicação vem de uma praga rogada justamente por aquele que deveria cuidar de vidas e almas.  Contam os idosos que Seu Neco, avô de Seu Antão, bisavô do Prefeito, bateu em um padre por motivos ignorados.  Seu Neco foi à igreja com um relho e avisou ao padre que veio para dar-lhe uma coça.  O religioso pediu para tirar a batina, mas escutou: Não.  Padre sem batina não é padre.  Dizem que o sacerdote rogou uma praga e Seu Neco morreu assassinado a tiros, tantos balaços quanto as lambadas que deu.  A praga foi tão forte, que daí para a frente os moradores do local só conheceram a pobreza. 

E o que dizem nossos valentes tropeiros que cortam estes sertões como oceanos sem fim? 
          Assombração?  Não adianta correr nem dar tiros.  Pra enfrentar tem que ter manha.  Falar as palavras de esconjuro, atravessar uma faca de aço na boca e morder a lâmina firme com os dentes.  Isto dá coragem, dá força na luta.

Já vendo o fundo da garrafa, vou me recolher mais cedo.  Enquanto durmo, escutem a história contada por aí, nas vendas e rodinhas reunidas pelas esquinas.  Mas por favor, não acreditem que dei o braço ao morto-vivo acompanhando-o de volta ao caixão!

Foi uma bela despedida.  Reunia a pompa de um velório de rico com a alegria, digo, tristeza, dos pobres.  O chefe da estação do trem de ferro fez um emocionado discurso, acompanhado de todos os ferroviários que trajavam seus uniformes de gala. 
O velório foi no saguão da estação que ficou lotada.  Pudera, quase quarenta anos naquele guichê. 
O Prefeito já falava há exatamente uma hora, quinze minutos e dez segundos e ainda nem tinha entrado na biografia do falecido. 
Todos perceberam que havia algo errado quando um funcionário cochichou nos ouvidos do Prefeito, que ficou mudo e sem cor.
Alguns afirmam terem visto o bilheteiro contraindo o rosto em sinal de descontentamento.
Ah... por aqui este não se elege mais.  Onde se viu contrariar um cidadão tão querido, justamente no dia de seu velório?
As autoridades e representantes da sociedade ficavam próximos do caixão.  A raia miúda pelos cantos e, um pouco afastadas, quase lá fora, Dona Mariazinha do Cajá com suas meninas do Beco do Mota.  Respeito era bom. 
Dona Berenice puxou um terço.  Dona Wanda mandou servir uma limonada.  Dona Maria Amélia regeu o coro das crianças.
Todos choraram.  Vozes infantis cantando têm um quê de tristeza.  Seriam as contradições entre a pureza e as incertezas do futuro?  Pode ser...
Lá pelas onze horas da noite, quando as autoridades e nobres representantes da sociedade já haviam se retirado, foi servida uma boa pinga.  Isto que é solidariedade humana!  Um simples bilheteiro sendo homenageado pelos fazendeiros da região com suas melhores cachaças, saídas dos alambiques para esta ocasião.
Tirando um soluço ou lágrima retardatária, o velório virou verdadeira festança, como reza a tradição popular. 
Seu Zéquinha da Viola dedilhou umas notas e começou animada cantoria.
E o forra-bucho?  Linguiça frita, torresmo crocante e até costeletas, pés e orelhas de porco. 
Todos bêbados, basta um começar a chorar e lágrimas são derramadas por todos, até dormirem pelo cansaço, ou talvez pelo álcool. 
No meio daquela roncaria toda, chegaram uns garimpeiros para a última homenagem ao nosso bilheteiro.  Sucesso no garimpo, lucro para as meninas do Beco.  Os “negócios” acabaram sendo feitos ali mesmo, atrás dos vagões do noturno que havia chegado no início da noite.

A culpa foi dessa pouca vergonha.  Logo que o dia raiou, o bilheteiro, indignado com a quebra protocolar, levantou do caixão, resolvendo ir por conta própria para o cemitério.
Se não fosse o Doutor Carlos, nem sei como acabava esta história toda. 
Será que ia adiantar a água benta do Padre Chico?


          Pela manhã tudo já havia voltada ao normal.  Meninos jogando pião, meninas pulando amarelinha. 
Passei pela estação e lá estava o bilheteiro em seu guichê como se nada tivesse acontecido. 
Gaguejei um “bom dia” e saí cambaleante. 
Belisquei o braço pra ter certeza não ser eu a tal assombração...

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