Botswana, Foto T.Abritta, 2008

domingo, 10 de janeiro de 2016

Desatino: terceiro capítulo de Jequitinhonha


          Ontem, olhos marejados.  Hoje, uma bela história.  Nem os já costumeiros falatórios podem atrapalhar.  Simplesmente ignore-os.
          O sol brilha nesta cinzenta São Paulo.  E estou inspirado:

          Toda manhã, bem cedinho, ainda escuro no inverno, o moleque traz um cavalo e o Promotor parte para destino incerto.

          Será que ele tem outra família?  Um santo de pau-oco!

          O pasto está verde.  O cavalo relincha, ergue as patas dianteiras saudando o amigo.  Bicheiras quase curadas.  Apenas um pouco de pomada Crino-D nas escaras.  Sabão preto na tábua de pescoço para evitar morcegos.  Crina e rabo sedosos, cascos endurecidos.  Em mais uns dias acabará sua solidão. 

          Domingo.  Todos na missa.  O tropel estremece a Rua do Amparo.  Pelo bater de cascos, a montaria não está ferrada.
          O moleque apeia, o Promotor sai correndo, ainda de chinelos e paletó de pijama.  Tempo apenas para enfiar uma calça de casimira.

          Além de não ter compostura no vestir, um ateu.  Deveria estar na missa.  
Enquanto a mulher reza, começa o dia pecando com outras...

          Amarra o cavalo na maçaneta da porta e corre para dentro.
          Tragédia anunciada: na esquina aponta o Buick de Seu Zizinho da Pedra – como o povo chama o proprietário da Fazenda da Pedra.
Ruído ensurdecedor, fumaceira fedorenta do gasogênio.  Em tempos de guerra era assim: na produção do gás combustível eram usadas pedras de carbureto – carbeto de cálcioque em contato com a água produzem o gás acetileno que é queimado.
          Diante do monstrengo ameaçador, o cavalo empina, cascos na porta que racha ao meio.  O Promotor aparece e grita: vai se chamar Desatino!

          Na pequena aglomeração que vai se formando, agora palavras de simpatia:

          Vocês viram?  Entrou com o cavalo casa adentro.  Está atravessando o corredor.
          Está lavando Desatino no tanque dos fundos.
          Agora está escovando.
          Está sendo selado.
          Lá vem ele.
          Montou
          Subiu a rua a galope.
          Vai descer.  Sai da frente!
          Será que para?
          Deslizou uns dez metros no pé de moleque...
          e não caiu!
          Melhor ferrar este cavalo.

Assim um cavalo conquistou a Cidade.  Histórias bonitas devem ser curtas e ter final feliz.
Todos acenavam, todos falavam: lá vai Desatino e o Promotor.


          Mas tomem cuidado.  Nem sempre a palavra cavalo, ou mesmo muar, é usada como denotação de seres alegres e inofensivos como Desatino.  A pequena e antiga história abaixo fica como alerta:

Reza a lenda que o rei lídio Creso envolveu-se excessivamente com Oráculos e tentou conquistar o gigantesco império Persa.  Acreditava nas informações oraculares de que perderia a guerra com este poderoso país, se ele fosse governado por um muloApós esta insana aventura, Creso voltou ao oráculo para pedir explicações e escutou que Ciro, o rei dos persas, devido a sua estupidez era considerado um mulo por estes religiosos
Como sempre, no final, o povo paga o “pato”, conhecendo os lídios o rigor da escravidão persaEm última análise, isto acontece por aqui, onde “oráculos” exploram a religiosidade e a fé popular, cultuando a ignorância e submissão ao poder.

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