Botswana, Foto T.Abritta, 2008

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Jequitinhonha

Hoje, 7 de janeiro de 2016, o meu pai , Oduvaldo Abritta, faria cem anos de idade. Abaixo publico o primeiro capítulo do livro Jequitinhonha, que pretendo lançar em sua homenagem, neste ano de seu centenário de nascimento. 
A história se passa entre 1939 e 1946, quando foi Promotor em Diamantina, cidade de nascimento de duas de minhas irmãs e de meu nascimento em 1946.  

O Herói Anônimo

          Existe heroísmo se não for acompanhado de reconhecimento público?  Tem sentido falar em heroísmo diante de uma disposição de bravura e determinação envolvendo apenas estados emocionais provocados por situações imaginárias? 
          Médico de uma cidade perdida nestas bandas do Jequitinhonha é assim: ou passa o tempo tomando sua cachacinha ou fica lendo e meditando enquanto não aparecem partos nem doenças.  Os casos mais graves, em geral, não dão muito trabalho – vou logo adiantando o atestado de óbito.  A turma por aqui não erra tiro de tocaia.  No fundo o Promotor tinha razão.  Muita gente ruim.  Dizem que é o frio do inverno, a chuvinha fina caindo dia após dia, velhos muros desabando com a umidade.  Por outro lado, aqui não é vergonha ficar caído num beco qualquer de tanto beber.  Nisto são atenciosos.  Vão logo falando: garoto, vai avisar dona fulana que seu sicrano tá caído...  Todos têm uma história de parente que morreu de cirrose hepática. 
          Acabei interrompendo o assunto “heroísmo”.  Mas se tiverem um pouco de paciência entenderão o rumo desta escrita. 

O Juiz da cidade estava sempre nas nuvens.  Diziam que já foi grande jurista e literato promissor em Belo Horizonte.  Seu sucesso foi sua desgraça.  Nomeado por mérito para esta Cidade no Vale do Jequitinhonha, acabou esquecido, abandonado neste fim de mundo.  Pela manhã despachava no Fórum.  Assim que acabavam as audiências, livrava-se dos processos dando as sentenças.  Mãos trêmulas, passava na venda de Seu Anízio.  Depois de alguns tragos, entre uma prosinha sobre política e o tempo, ia para casa.  Sempre entrava pela porta da cozinha.  Levantava a tampa das panelas com a ponta da bengala e reclamava grosseiramente da comida – por isto era odiado por todas as mulheres da cidade: como pode tratar Dona Berenice assim?  Verdadeira santa!  Passava as tardes e noites na sua biblioteca, único refúgio neste fim de mundo. 
Eu gostava de visitá-lo e ficar escutando verdadeiras aulas de Literatura.  Declamava poemas, recomendava livros e falava de algumas raridades bibliográficas em suas estantes.  Foi lá que li, na Revista Brasileira, os contos de Affonso Arinos.  Sempre que uma tropa chegava ao Mercado Municipal, pensava logo no conto Assombramento, onde o tropeiro Manuel lutava contra fantasmas de sua imaginação, mas paradoxalmente tão concretos em suas evidências observáveis.  Complicado?  Não, maravilhoso.  Uma obra prima de histórias deste Sertão.  No final da luta, entre exaustão total e delírios, as palavras de bravura: “Eu mato!... mato!... ma...”.  Verdadeiro herói diante dos demais tropeiros. 

          Quando seu Anízio “convocou” aquela reunião em sua venda, não imaginava tratar-se exatamente deste assunto. 
          Os leitores mais velhos me compreenderão.  Aos mais novos, peço paciência.  Depois de certa idade, nem sei por que esta mania irritante de datas, nomes e detalhes completos.  Quem sabe um aperfeiçoamento intelectual? 
          A data não posso precisar.  Mas o ano foi 1942.  Estava fazendo o parto da primeira filha do Promotor, recém chegado para esta comarca, enquanto o rádio do vizinho noticiava a guerra, com as primeiras vitórias do Exército Vermelho contra os nazistas em Stalingrado.  Parece que foi ontem.  Eu pensava: aqui, a vida.  Lá, a morte. 

          Fui o primeiro a chegar.  Esperei um pouco, enquanto seu Anízio ajudava a colocar na carroça as compras de um garimpeiro. 
          Logo chegou o Promotor, meio de lado, mostrando que alguma coisa não ia bem.  Seu Rocha foi o último a aparecer e foi logo falando: chega de poetagem, seu Anízio, conta logo o ocorrido.

          Pensando bem, este não é um texto literário.  São anotações, onde vou organizando minhas ideias.  Futuramente faço a revisão e acabo chegando a uma escrita mais fluida e agradável.  Espero que tenha tempo para isto.  Devo mudar nomes e transformar pessoas reais em personagens.  Assim tenho a liberdade de ir escrevendo, em pequenas doses, as informações que chegam da memória tão apagada.
Por exemplo, quanto ao ano 1942, fiz também um cálculo objetivo.  Carregava na carteira aquela lista de endereços e telefones de pessoas a serem avisadas quando eu morresse.  Lá estavam os nomes da filha mais velha do Promotor e de seu marido.  Fui padrinho deste casamento.  Tenho aqui o convite junto com o recorte de jornal que publicou sua redação quando ela fez a prova para o Instituto de Educação no Rio de Janeiro.  Estive também na sua formatura de Normalista.  De vez em quando saía de São Paulo e visitava amigos no Rio. 
          Bem, seu Rocha não pode mais esperar.
          Deixemos Seu Anízio narrar o ocorrido.

          Ontem à noite apareceu lá em casa, pedindo socorro, a mulher do Promotor carregando a menina no colo.  Pedi a Rosa para cuidar das duas e corri para chamar seu Rocha.  Doutor Carlos ficava para depois.

          Pode falar que não me ofendo.  Atestados de óbito não são urgentes.

          Seu Rocha, vocês sabem como é...

          Aí você está certo.  Ando com os dedos coçando para dar um corretivo naquela corja.  Semana passada mesmo, o Coronel passou bem devagarinho na frente da minha casa.  Quase que respondi à provocação.  Perdi uma grande oportunidade.  Em geral, quando ele passa, vão dois soldados na frente e dois atrás, carabinas na mão, olhos atentos.  Desta vez estava apenas com o Cabo Chico Diabo.  Dava pra acabar com os dois.  Só não cumpri a missão em respeito ao Promotor. 

          Quando cheguei na esquina dei de cara com a procissão noturna que acabava de descer pela Rua do Amparo.  Corri e encontrei o Promotor fumando na janela...

          O susto foi grande.  Depois que saiu a charge no jornal – com um sujeito magricela, de óculos, montado de costas num pangaré, seguido por uma mulher a pé com uma criança no colo; todos sendo expulsos da cidade debaixo de uma chuva de ovos podres – fiquei cismado.  De manhã, quando escovava os dentes no tanque, já ia com o revólver no bolso do pijama.  Minha mulher foi quem me acordou, dizendo: “estão chegando”.  Só tive tempo de colocar um caixote nos fundos do terreno para ela subir, pular o muro dos fundos e falar: “se esconda na casa do Seu Anízio que vou depois”.
          Coloquei o sofá atravessado no corredor, entre as portas do quarto e do escritório, me escondi atrás, a 44 com bala na agulha e o revólver à mão.  Munição espalhadas pelo chão para facilitar as recargas.  De lá podia vigiar a janela do escritório à esquerda, a janela do quarto na direita e a porta de entrada na frente.  Em um dos três pontos entrariam primeiro.  Só atiraria em quem colocasse um pé dentro de casa.  O vozerio foi aumentando, aumentando, e por milagre começou a diminuir, diminuir.  Já escutava claramente as rezas, com todos os améns  Quando abri a janela, ainda cumprimentei alguns conhecidos na procissão.  Acendi um cigarro e logo chegou Seu Anízio todo assustado. 

          Mas, Doutor Promotor, eu já disse que este era um problema resolvido.  O Senhor não confirma, ninguém fala nada, ninguém viu.  Mas todos comentam que o grandalhão se molhou todo quando num beco escuro, com o cano do revólver no nariz, foi obrigado a engolir a charge.  O povo ri um bocado dizendo que deveria obrigá-lo a engolir o jornal todo.  Bem, esta história é de difícil comprovação.  Mas gostei do seu sangue frio ao ir embora, dando as costas para um homem daquela importância, todo molhado, com aquele trabuco na cintura.  O risco foi grande.  Como já disse, o estilo aqui é tocaia pelas costas.  Até o Coronel, na hora de matar, e foram muitos, manda Chico Diabo armar tocaia.  Crime de honra não.  Aí tem que ser pela frente e à luz do dia.  De preferência na praça principal com todo povo saindo da missa para assistir.  É como se fosse uma cerimônia pública.  Mesma coisa que batizado ou casamento. 

          De matar e morrer Seu Rocha é conhecedor.  Eu, apenas pacífico comerciante.  Doutor Carlos, então, está lá do outro lado, tentando consertar, salvar, lutando pelo Socialismo e um mundo mais justo.
          Bem, vamos tomar um gole e brindar, com todo respeito, nosso herói anônimo!

          As palavras finais de Seu Anízio foram encantadoras.  Homem simples do Sertão usar expressão tão casta: Herói Anônimo.  Nova categoria literária a enriquecer o conhecimento, somando-se à Poética de Aristóteles com o Herói Trágico condenado por um único erro.  Pequeno deslize involuntário ou impensado – a Hamartia.  Aqui não.  Nosso Herói é desconhecido, anônimo, não busca fama, nem reconhecimento.  Não é assim a vida do povo nestes fundões brasileiros? 
          Histórias regionais não significam apenas interesses e objetivos restritos.  Podem ter um caráter universal, discutindo grandes temas como a Violência, Opressão, Solidão, Tristeza, Morte.  O Homem é o mesmo, apenas cenários mudam.  Seja lá na Grécia Clássica ou neste solo pedregoso, colorido pelo sangue dos que lutam por Justiça. 
          Os tropeiros que cortam estas terras, levando mercadorias e notícias, são como os marinheiros que navegam pelo mundo, com suas ilusões de um amor em cada porto, mas, em geral, carregando passados de perdas, solidão, frustrações.  Vagueiam à procura de lugares não existentes nos vastos oceanos ou neste Sertão sem fim. 

          Fiquei contente com estas primeiras linhas, escritas pacientemente em folhas de papel almaço.  Jamais me acostumaria a uma Remington.  Como poderia pensar com aquele martelar de teclas?  Afinal sempre escrevi à mão, sejam lá receitas, anotações sobre pacientes, laudos médicos ou cartas pessoais. 
          Até que não é tão difícil assim escrever.  Apenas deixo fluir os sons da natureza, as vozes de alegrias e tristezas humanas. 


      Rua do Amparo, anos 40.  Acervo Teócrito Abritta.




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