Botswana, Foto T.Abritta, 2008

sábado, 2 de abril de 2016

Paraísos Perdidos: Reino do Butão


          A História do Reino do Butão aos pés do Himalaia, espremido entre dois gigantes – Índia e China – vem de tempos imemoriais.  Diz a tradição que o pequeno reino foi dominado pelo demônio, tendo sido libertado pelo legendário Guru Rimpoche que o converteu ao Budismo.  Os primeiros europeus a visitar estas terras foram os Jesuítas Portugueses Cacella e Cabral, em 1627, que como bons religiosos sempre procuravam rendosos negócios.
O país permaneceu como um Estado Teocrático até 1907, quando os principais Lamas resolveram escolher um rei. Com o título de “Rei do Dragão” iniciou-se uma monarquia hereditária que está atualmente no seu quarto representante, o atual rei Jigme Singye Wangchuck.  Este governante anunciou na época que abdicaria do trono em favor de um de seus filhos e transformaria o país em monarquia constitucional, elegendo uma assembleia constituinteMas a força do poder real vem da religião, com uma verdadeira multidão de monges – calculada em quinze mil – sustentada pelo governo e vivendo em imensos mosteiros e palácios.
Quando conhecemos o esplendor do reino budista terreno, passamos a acreditar em algum poder mágico, que nãopara imaginar a fonte de recursos para a sua construção e sustento, arrancada de pobres camponeses.  Ainda hoje, noventa por cento da população do Butão (aproximadamente setecentos mil habitantes), vive da prática da agricultura de subsistência.  O governo falava em um Índice de Felicidade Interna Bruta, em substituição ao índice que mede o produto interno bruto, mas que na realidade apenas reflete o controle da população pela coerção religiosa e falta de informaçãoPelo sim pelo não, uma droga muito comum por aqui, principalmente entre as pessoas mais idosas, é uma espécie de noz que após ser triturada é envolvida por uma folha de um vegetal chamado betel; mascada, produz efeitos alucinógenos, mas causa como efeito colateral uma gengivite crônica que afeta boa parte da população

A face colorida do Butão
          Para os estrangeiros as únicas entradas para este reino são ou por via aérea, pelo único aeroporto do país na cidade de Paro, ou por via terrestre saindo da cidade indiana de Jaigaon que faz fronteira com a cidade butanesa de Phuentsholing, uma espécie de zona franca de fronteira, onde comerciantes indianos, árabes e do mundo inteiro espalham uma imundície indescritível vendendo suas mercadorias.
Ao sairmos da cidade, começamos a gostar do Butão, com seus rios cristalinos, florestas e um povo receptivo que tem orgulho de vestir roupas típicas e grande prazer em convidar para conhecer suas casas.
Chega-se à capital do país, Thimphu, a cento e oitenta quilômetros da fronteira, por uma estrada precária que acompanha vales de rios maravilhosos, viajando por alturas que causam arrepios cada vez que os carros e caminhões se encontram e têm que se espremer entre os abismos e paredões para as complicadas manobras de ultrapassagem que às vezes levam minutos
          Ao chegar a Thimphu, voltamos no tempo: arquitetura típica, pessoas trajando roupas locais, sem sinais de trânsito, onde não existem sacos plásticos e ninguém fuma em lugares públicos.  O ar medieval é acentuado quando conhecemos um pouco da história em que o atual rei, mesmo com uma educação europeia, casou-se com quatro irmãs, no mesmo dia e em uma única cerimônia.  Outo acontecimento fantástico foi participar de uma grande festa cívica e religiosa no Trashi Chhoe Dzong, um complexo de templos budistas, palácio real e sede administrativa do governo.  Estava presente a família real, todas as pessoas importantes da sociedade e do clero, e o povo vestido com suas melhores roupas como em uma verdadeira ópera gigantesca, com muito incenso e rufar de tambores (V. figura 1).


Figura 1 – Cerimônia no Palácio Real em Thimphu.  Foto T.Abritta, 2007.

          Na saída da família real todos abaixaram as cabeças, o rei passou célere sem olhar para os lados, mas as duas irmãs, rainhas mais velhas, não resistiram em nos olhar e sorrir, ao que respondi com uma piscadela discreta para não quebrar o protocolo.
          O Butão tem mais de setenta por cento de seu território coberto por florestas, e mais da quarta parte do país protegida por parques nacionaisNos últimos anos seu monarca iniciou um processo de modernização.  As transmissões de televisão via satélite chegaram em 1999 e posteriormente os telefones celulares e a Internet.  Neste processo tem sido dada grande importância à saúde pública, educação (V. figura 2), melhoria de estradas e comunicações, sem descuidar da política de preservação da natureza e cultura.
          A renda para o desenvolvimento do país vem do turismo, com a construção de luxuosos hotéis de cadeias internacionais, da venda de energia elétrica para a Índia, o que representa trinta e dois por cento da arrecadação governamental, e da extração madeireira.

Figura 2 – Escolares butaneses com os seus belos uniformes.
Foto T.Abritta, 2007.

A face negra do Butão
          Infelizmente, o pequeno Reino do Butão, no seu processo de desenvolvimento, torna-se cada vez mais refém da Índia, que compra sua energia elétrica, destrói florestas com a extração madeireira, fornece técnicos, professores e segurança militar.  O Butão resiste, mas a Índia, como a China, tem que exportar parte de seu povo para aliviar a explosão populacional.  No Butão existem atualmente 50 mil trabalhadores indianos na condição de empregados temporários na construção de estradas e trabalhos braçais, fora os técnicos mais especializados, necessários para a modernização do país.
          Nos trabalhos de melhoria das estradas, feitos pelo Exército Indiano, são empregadas milhares de mulheres que trabalham quebrando pedras, carregando terra em cestos, praticamente fazendo tudo com as mãos sem ferramentas ou recursos técnicos.  Trabalham em regime de quase escravidão, vigiadas por militares indianos armados, algumas carregando crianças nas costas, cozinhando e vivendo na lama e chuva (V. figuras 3 e 4).  No final do dia cruzamos nas estradas com aqueles sinistros comboios de caminhões, militares indianos armados sentados nos tetos e nos estribos, levando mulheres amontoadas como gado, que nos acenam tristemente com mãos feridas e enroladas por trapos, a caminho para uma espécie de campo de concentração onde dormem.


Figura 3 – Trabalhadoras indianas no Butão.  Foto T.Abritta, 2007.

          Paradoxalmente, nos campos de trabalhadores masculinos faltam mulheres, sendo comum a formação de casais homossexuais que se acariciam no meio da lama nos breves momentos de descanso.
          Os indianos não têm em suas construções nenhuma preocupação com o meio ambiente, e as estradas são alargadas jogando em rios intocados todo o entulho, manchando a natureza de lama, óleo e lixo.
          Parece que o chamado milagre econômico indiano no fundo significa lucros gigantescos para uma minoria e miséria para a maioria, com o desprezo pela dignidade humana com o uso de mão de obra escrava.



Figura 4 – Trabalhadoras indianas com toscas ferramentas e improvisações para compensar as limitações de sua fragilidade física.  Foto T.Abritta, 2007.

Santos e Demônios
          Após longo percurso por essa região, visitando dezenas de templos e palácios, tivemos apenas uma única oportunidade de encontrar um verdadeiro discípulo de Buda, que caminhava pela estrada, visitando amigos camponeses que conheceu nos seus oitenta anos de vidaEste verdadeiro monge tinha como bens materiais duas bolsas de pano.  Na primeira carregava algumas roupas, um cobertor, uma toalha, alguns pedaços de pão e pequenos objetos.  Na outra trazia dois pesados livros, com páginas soltas e escritas à mão em papel artesanal antigoApós conversarmos por gestos, deitou-se no chão para enfiar os braços nas alças das sacolas; pediu que o erguêssemos e despediu-se contente por ter ganhado uma maçã.
Depois desse encontro refleti e cheguei à conclusão de que uma espécie de santidade estava também nos milhões de pessoas que sofrem, lutando para sobreviver neste mundo de injustiças.
Por outro lado, parece que os demônios que atentavam Buda, oferecendo-lhe um reino material, tiveram grande sucesso, criando um mundo com tanta opressão e desigualdade.






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