Botswana, Foto T.Abritta, 2008

domingo, 1 de maio de 2016

Eu, Nihil

          Sempre que me identifico é este horror.  Tira qualquer prazer em viajar.  Nos aeroportos é sempre assim.  Um país de analfabetos.  Era para ser Nilo Batista, acabei registrado Nihil, um nada.  Cartório de incompetências.  Estou condenado a viver neste mundo detestável, carregando o ridículo. 
          Enquanto aguardo o embarque, abro o jornal e fico mais deprimido ainda com o artigo de um geógrafo ambientalista:

          “Em minhas andanças pelo Brasil presenciei toda sorte de desvios ambientais praticados pelas populações: caça e pesca ilegais, incêndios criminosos de florestas e pastagens; uso indevido de defensivos agrícolas, destruição de encostas, matas ciliares e poluição das águas.  Mas o que mais me chocou foi a matança das inocentes e poéticas arribaçãs no Nordeste e de preguiças e outros pequenos animais durante a pororoca na Amazônia.
          As arribaçãs (Zenaida auriculata), também conhecidas como avoante, pomba do sertão ou de bando, distribuem-se geograficamente das Antilhas a Terra do Fogo, conforme a época do ano, dentro do seu ciclo migratório.  Em certos meses formam bandos compactos no Nordeste brasileiro, tendo representado, no passado, uma importante fonte de alimentação dos sertanejos nas secas mais severas.  Infelizmente hoje é considerada uma iguaria preparada com arroz e feijão, sendo muito apreciada pelos caminhoneiros que por trafegam.  Para responder a esta demanda perversa, as avoantes são mortas em massa usando-se ração misturada com agrotóxicos em alta concentração, o que resulta em campos cobertos de aves mortas.  Podemos dizer que estes criminosos chegaram ao máximo em seu poder de morte.  Matam a Natureza e envenenam o homem de imediato!
          Durante as pororocas, quando as águas do oceano, com a subida das marés, invadem a foz do rio Amazonas, os animais se refugiam nas pequenas ilhas e vegetação mais alta, esperando, indefesos, a descida das águas.  Os ribeirinhos pegam estes animais praticamente com as mãos para complementar a sua alimentaçãoCom o desenvolvimento do turismo e comércio esta antiga prática virou uma matança e logo após a passagem da pororoca, canoeiros saem matando a pauladas e recolhendo para salgar e comerciar a nossa sofrida fauna silvestre amazônica, fazendo pilhas com mais de metro da Natureza morta.  Devemos rever a nossa legislação, pois abusos como estes são tolerados em nome de um falso estado de necessidade ou fome extrema o que não se aplica nestes casos.
          Portanto a defesa da Natureza tem que ser vinculada a um sério programa de desenvolvimento, educação, combate ao populismo e corrupção, caso contrário teremos que assistir eternamente os favelados de Brasília caçando animais no Jardim Zoológico desta reluzente capital federal!”

          Atiro o jornal no lixo.  No fundo, tento não ver esta realidade.  Mundo deplorável que me aprisiona.  Eu, Nihil: o nada. 
Olho a jovem ao lado, entretida com sua maquininha luminosa que solta sons e estalos estranhos.  Pelos vidros do aeroporto, vejo lindo céu azul cortado por belas nuvens alongadas, perfeitamente planas em suas bases. 
          Gostaria de explicar à jovem ao lado que isto acontece, porque a pressão atmosférica e a temperatura do ar dependem da altitude.  Abaixo das bases das nuvens, o vapor de água condensa-se.  As condições físicas não permitem a formação de nuvens até aquela altura.  Mas não falarei.  Ela iria responder: “o quê que eu tenho com isto?”
          Entro e sento-me ao junto à janela do avião.  Na poltrona ao lado, a tal da jovem com a maquininha estalante. 
          O sol estava alto e, como hipnotizado, ia seguindo a sombra do avião nas nuvens.  Uma auréola colorida emoldurava a imagem (ver Foto 1).




Figura 1 – Sombra nas nuvens.  Foto T. Abritta.

           Lembrei-me que este fenômeno foi registrado pela primeira vez por Benvenuto Cellini, no século dezesseis, ao observar do alto de uma montanha sua sombra rodeada por colorida auréola.  Sentiu-se iluminado, atribuindo à luminosidade o reflexo de sua genialidade artística. 
          Poderia explicar à jovem ao lado que a auréola era devido à refração da luz nas gotículas...  Mas não explicarei.  Ela falaria: “o quê que eu tenho com isto?” 
          Passei a me divertir fotografando as hélices do avião que pareciam paradas (ver Figura 2).  Poderia explicar para a jovem ao lado que mesmo girando em alta rotação, existe uma sintonia com a velocidade de varredura da máquina fotográfica digital que atua como um estroboscópio.  Mas ela simplesmente falaria: “o quê que eu tenho com isto?” 



Figura 2 – Hélices de um avião.  Foto T.Abritta.

          Estranho.  Não consigo mais “parar” as hélices.  A velocidade de rotação está variando.  Diminuindo.  O motor do avião, parado.  Estamos caindo.  Gostaria de explicar à jovem ao lado...
          Agora, o nada me impedirá – auréola de anjos da morte.


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