Botswana, Foto T.Abritta, 2008

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Roça Chique, Uai


          Nestes últimos feriados decidi afastar-me desta vida trepidante no Rio de Janeiro.  Em busca de refúgio, abri um enorme mapa do Brasil, ziguezagueando os olhos nesta procura.  Acabei atravessando a fronteira mineira, encantando-me com os nomes das cidades e povoadosCada lugar era um convite: Borda da Mata, Dores de Campo, Retiro da Onça, Formiga, Sereno, nomes que soavam como apelo à preocupação ambiental.  Outros apelavam para a poesia: Estrela Dalva, Espera Feliz, Monte Sião e Mar de Espanha, para não falar em Milho Verde, Luminárias, Trinta Réis...  Seria decisão difícil, até surgir a pequenina Catas Altas da Noruega, na região do ciclo do ouro colonial. 
          Esta cidade me lembrou uma velha história familiar, de que a minha avó, pelo lado paterno, teria ascendência germânicaEstudos genealógicos desmentiram a versão, mas mostraram que provavelmente seus ascendentes vieram de Catas Altas da Noruega, daí a confusão
          Os valentes desbravadores portugueses e paulistas quando não nomeavam um lugar com o nome de santo, batizavam-no com o nome de uma de suas características.  O termo “Noruega”, portanto, nada tem a ver com os nórdicos e sim com o frio desta região.  Nesta geografia dos caçadores de ouro, uma encosta meridional de montanha que recebe pouco sol, sendo muito fria, é chamada de noruega.  Monteiro Lobato, no conto Velha Praga, fala também emgrota noruega” como um vale frio e pouco ensolarado
          Depois destas digressões histórico-geográficas iniciei a viagem para este lugar de nome tão singular.  No caminho ia refletindo que em Minas até as doenças graves eram de fácil cura, como, por exemplo, aquela em que uma criança ficava “aguadaquando lhe negavam guloseimas e iguarias.  O tratamento era simples: bastava banquetear alguns dias nas casas dos vizinhos e a criança se recuperava, para o conforto dos paisPor outro lado, havia os “gaveteirosque faziam suas refeições em grande mesa sem toalha, qualquer paninho ou louça, nada além do prato-feito e talheres.  Assim que algum vizinho anunciava: ô de casa, pratos, garfos e facas eram guardados rapidamente em grandes gavetas sob a mesa; por milagre aparecia um baralho, e a resposta era: senta cumpadre, vem jogar um baralhinho...  A turma da Zona da Mata Mineira diz que os gaveteiros são de Divinópolis.  Mas certamente em Divinópolis nomearão outra cidadeMas o certo é que sempre encontramos em velhas fazendas e casarões mineiros aquelas mesas típicas dos gaveteiros
          Por distração ou manhas do destino, acabei entrando em uma estradinha desconhecida, desviando-me do caminho traçado anteriormente.  Isto a apenas poucos quilômetros da lendária Catas Altas da Noruega. 


Catas Altas da Noruega.  Foto da página da cidade.

          Em um asfalto impecável o carro rodava, serpenteando entre verdes montanhas, até atingir a altitude de mais de mil metros, onde uma placa avisava que estávamos no cume da Serra do Espinhaço, saindo do lado em que as águas alimentavam a bacia do Rio São Francisco para entrarmos no lado doce da serra – a bacia do Rio DoceMais adiante, placas com muito humor alertavam: “Cuidado, Formigas na Pista” e acabava o asfalto, com o piso agora feito de pedras tipo pé-de-molequeera um corredor ecológico para a passagem dos animais nas zonas de matas mais fechadas. 
          Depois foi um desfile de belas fazendas, todas restauradas com esmero, nesta região de agricultura e pecuária que se desenvolveu para alimentar os faiscadores de ouro da região de Mariana e Ouro PretoEste desfile começou com a Fazenda da Pedra, prosseguindo com a Santa Marina, do Tanque e Fonte Limpa, terminando em Santana dos Montes.  O casario da rua principal estava totalmente restaurado, abençoado por sua Igreja dominando a paisagem no ponto mais alto.  No final de tantas surpresas, recuperamos o fôlego tomando cafezinho com broa de milho no Casarão dos Montes, onde todos se reuniam para uma prosa antes do anoitecer. 
Como os antigos tropeiros, pousamos na Santa Marina para melhor explorar a região.  Lá conhecemos um grande restaurador que, com sua esposa e filhas, deixou como novas três fazendas históricas, salvando também o casarão de uma quarta que, de tão velho e abandonado, tinha ruídoCada pedra, esteio, porta ou janela foi numerada e tudo remontado ao lado da primitiva casa grande da Fazenda Santa Marina
          Foram dias memoráveis nesta cidade, onde a História parecia sair do passado para nos visitar.  A preservação ambiental é levada a sério e a cultura local valorizada.  Conhecemos também Cientistas Sociais que não estudam, como também fazem a História, trabalhando em projetos de interesse comunitário, como oficinas de luthiers e conjuntos de violas caipiras, além das fazendeiras “encantadas”: havia aquela, com sorriso bonito, olhos expressivos, fala suave, que ia levando seu rebanho para o mundo da poesia e literatura, declamando: estava ela a olhar/ debruçada a janela.  Seus olhos verdes faziam par/ com o verde das folhas das hortênsias...  Outra tinha sido seduzida pelos lobos guarás, que transformaram sua propriedade em verdadeira escola, onde filhotes treinavam a arte da caça devorando galinhas.  Sempre sorrindo, falava dos tatus que comiam suas mandiocas e das saracuras que usavam a horta para banquetes. 
          Ao nos despedirmos desta cidade, cruzamos com um violonista itinerante que, com sua arte musical, chegava aos lugares mais afastados e remotos, tal um mariachi da vida rural brasileira.  Levamos também a terna lembrança da senhora, moradora da praça principal de Santana dos Montes, que acordava de madrugada, espiava pela gelosia e, se tudo estivesse deserto e silencioso, girava a tramela e lá ia, enrolada em um xale, apagar as luzes da praça, contribuindo para amenizar o uso desenfreado dos recursos naturaisAfinal de contas, era uma roça chique, uai
          Acabei não conhecendo os perigosos e fatais golpes de ar das gélidas montanhas mineiras da Noruega.  Mas quem sabe, outro dia...

Publicado em maio de 2009 no Montbläat e no livro




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